segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Literatura, Contos e Fábulas:

CONTOS NEFASTOS DO AKIN

       Elisa e a bola de cristal

 

Elisa era uma mulher dedicada ao estudo do misticismo, e sendo escritora, escreveu alguns livros sobre o assunto, e também escrevia diariamente em revistas e artigos especializados nas artes ocultas. Certo dia, Elisa recebeu uma carta que dizia ter sido escrita por uma bruxa. A carta dizia que a bruxa visitaria Elisa e deixaria com ela um presente. Uma semana depois, bateu na porta de Elisa uma mulher velha, que escondia quase totalmente o corpo com uma roupa mofada e um capuz. A pessoa desconhecida tinha consigo uma bola de cristal, e disse à Elisa que a estava dando de presente. Elisa perguntou por que ela estava recebendo aquele presente, e a desconhecida disse que aquela bola de cristal é mágica, e precisava ficar em boas mãos. Depois de entregar a bola de cristal para Elisa, a pessoa foi embora sem dizer mais nada.” Que surpresa!” Disse, Eliza. “  Uma bola de cristal mágica. Vou aproveitar para perguntar alguma coisa e ver se ela me responde. Amanhã irei a um evento importante, como isso vai ser?” A bola de cristal brilhou em azul bem forte, e uma voz em sua cabeça contou para Elisa que ela faria boas conexões profissionais, mas que no regresso bateria o carro e machucaria o seu pulso direito. “Que coisa! O que foi isso que acabei de ouvir? Mas não vou deixar de ir ao encontro, e também não baterei o carro!” No dia seguinte quando Elisa retornava do evento em seu carro, um outro veículo surgiu do nada e colidiu com ela, machucando-a em seu pulso direito.” Elisa ficou assombrada. Ao chegar em casa, Elisa perguntou para a bola de cristal o que aconteceria se ela fosse fazer compras naquele exato momento. A bola de cristal disse a ela que ao  passar de quatro dias, ela e o seu namorado romperiam o relacionamento. Elisa perguntou o que aconteceria se no dia seguinte ela fosse caminhar no parque. A bola de cristal respondeu que com o passar de dois anos, Elisa sofreria um acidente e perderia a sua perna esquerda. Elisa perguntou o que aconteceria se ela fosse ao cinema no final de semana como havia combinado com uma amiga. A bola de cristal respondeu que com o passar de nove meses Elisa morreria atingida por um raio. Elisa nunca mais saiu de casa, e passou o resto dos seus dias em um estado de paranoia, até que ficou fraca, e de doença, faleceu.

 

FIM


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O boneco de madeira

 

Em uma região afastada das cidades grandes, fábricas derrubaram as florestas, e na última reserva que foi devastada havia uma grande árvore, a mais antiga de todas, e a sua madeira foi usada entre outras coisas para a fabricação de um boneco articulado. O boneco foi vendido para uma criança chamada Oswaldo. Acontece, que muitos povos antigos viviam ao redor daquela árvore sagrada, e o boneco, carregado com grande energia espiritual, por ser feito da madeira dela, ganhou vida. Oswaldo brincava com o seu boneco, e o seu boneco brincava com ele. O boneco era puro e inocente. Até que um dia, Oswaldo levou-o até um local arborizado para brincar. O boneco sentiu que havia alguma coisa que ligava ele e aquelas árvores.  Naquela noite o boneco desapareceu, e uma semana depois, durante um incêndio inexplicável em uma das fábricas, que já era o terceiro consecutivo, encontraram o boneco de Oswaldo causando o fogo. Alguém conseguiu tirar uma dúzia de fotos antes que o boneco fugisse mata adentro. Saiu uma matéria sobre isso no noticiário local: “Boneco teria causado os incêndios nas fábricas.” Mas a notícia foi considerada mais uma matéria sensacionalista e foi esquecida pela maioria das pessoas.

 

FIM


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Dora e o defunto

 

Anadora era uma menina de dezessete anos, um pouco diferente das demais garotas da sua idade. Dora não tinha nenhum amigo, ou amiga, e era muito calada. Os pais dela eram muito ausentes, e passavam pouco tempo em casa. Mas Dora, preferia passar o seu tempo no cemitério da cidade. Naquele cemitério, Dora sentia-se bem a vontade. Ela caminhava durante horas, olhando as lápides, e depois se sentava abaixo de uma árvore florida que ali existia. Numa tarde, enquanto ela caminhava pelo cemitério, para sua surpresa reparou em um túmulo que ela nunca tinha visto antes, quase todo coberto pela folhagem. "Como pode ser?" pensou ela, e decidiu se aproximar para olhar mais de perto.

Ficou espantada, ao constatar pela data na tumba, que aquela pessoa já havia falecido a duzentos anos. Tinha uma brecha na tampa do túmulo, e Anadora espiou o seu interior. "Que espanto!" Aquela pessoa estava em perfeitas condições, como se ainda estivesse viva. Aquela noite foi a primeira que Dora não voltou para casa. A menina ficou ao lado do túmulo, pensando, se deveria abri-lo, e saciar sua curiosidade. Aquela vontade foi se tornando mais forte com o passar dos dias, e Dora não pensava em outra coisa além disso.

Até que, certa noite, no meio da madrugada, Dora tomou coragem, e empurrou com todas as suas forças a tampa, que por fim se abriu. "Que perfume maravilhoso! Parecem rosas! Que expressão tranqüila a deste homem morto. Que pele impecável! Parece o príncipe que eu sempre sonhei que estivesse ao meu lado." Na noite do dia seguinte, ela entrou na tumba, e dormiu deitada sobre o corpo. Sonhara estar em um campo florido, cheio de animais que vinham até ela, e lhe prestavam homenagens. Na noite depois daquela, ela deitou-se da mesma forma, e tocou os lábios do morto com os seus. E, neste exato instante, o defunto a abraçou com força, jamais deixando-a partir. Anadora nunca mais foi vista.

 

FIM


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O fantasma do índio Raposa Vermelha

 

No passado, muitos índios habitavam as planícies e as colinas. Um deles, foi o índio Raposa Vermelha. Raposa Vermelha era conhecido por dançar durante dias seguidos, sem parar, e também por causa de sua extrema longevidade. Mesmo aparentando ter trinta anos, Raposa Vermelha já tinha cento e trinta anos. Os xamãs o respeitavam, e, alguns até mesmo o veneravam, dando-lhe oferendas. Dizem, que Raposa Vermelha foi morto pelo tiro de uma arma de fogo, quando o homem branco veio, mas o seu espírito, às vezes, volta para dançar na terra onde ele costumava viver. Foi o que um grupo de aventureiros soube. E eles quiseram averiguar por si mesmos.

Com suas mochilas nas costas, o grupo acompanhou um guia local, e durante a ocasião em que passavam pelo território onde viveu o índio Raposa Vermelha, o guia contou-lhes um pouco sobre a lenda do espírito do índio, que, às vezes, era avistado dançando por ali, principalmente durante as noites de lua minguante. O grupo riu, e foi até uma cabana nas redondezas para passar a noite.

Eles conversaram, e decidiram naquele momento, ir até o lugar onde lhes foi dito ser assombrado pelo fantasma do índio Raposa Vermelha, afinal, era uma noite de lua minguante. Aquela decisão, eles jamais poderiam esquecer. Mesmo com toda aquela emoção, nenhum deles acreditava realmente que veria o fantasma do índio.

E não demorou muito, para que, à partir de um redemoinho de vento, aparecesse a imagem de um índio, dançando ferozmente. Seus longos fios de cabelo, avermelhados, e a cor de seu corpo, azulada. Vestia roupas de pele de búfalo, e em sua mão direita, o fantasma segurava um chocalho, que sacudia conforme o balanço de sua dança. Os pés não tocavam o chão, e levantavam uma nuvem de poeira. Uma voz fantasmagórica cantava no antigo idioma indígena. Era o fantasma do índio Raposa Vermelha.

Apesar do susto, alguns se deixaram envolver pelo ritmo, e passaram a dançar junto ao fantasma. Outros, decidiram voltar. Na manhã seguinte, os que haviam retornado para a cabana na noite passada, ouviram a porta bater. Eram os que tinham ficado com o índio. Estupefatos, viram que, aqueles que haviam ficado, e dançado com o fantasma do índio Raposa Vermelha, envelheceram quarenta anos, da noite para o dia.

                                                                   

FIM


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O marinheiro e a sereia

 

Em pleno alto mar, o barco por pouco resistiu a uma tempestade terrível, e os marinheiros, esgotados, recompunham as suas energias. A tempestade levou o barco até a proximidade de pequenas ilhotas. Um dos marinheiros, olhando para a terra firme, notou uma bela mulher deitada sobre um rochedo, com a cabeça e o busto de fora da água. Tentado pela mulher, e temendo que viessem a ser pegos por uma outra tempestade, o marinheiro pulou ao mar e nadou até lá. Quando alcançou o terreno firme, percebeu que aquela linda mulher de cabelos loiros e compridos, tinha da cintura para baixo uma cauda de peixe, prateada, e que balançava graciosamente, dentro da água. “Você é uma sereia!” disse o marinheiro ao perceber.

A sereia, através do seu maravilhoso canto, disse ao marinheiro que ela poderia se transformar na mulher que ele imaginasse. O marinheiro perguntou “- Você pode se transformar na princesa?” , então a sereia tomou a forma da princesa, e o marinheiro à possuiu. “- Você também pode se transformar na vendedora da laranjas?” novamente a sereia tomou a forma da moça, e novamente o marinheiro à possuiu. “- Agora se transforme na filha do cozinheiro.” mais uma vez, a sereia tomou a forma de tal mulher. Enquanto o marinheiro à possuía, de uma hora para outra, seu prazer transformou-se em horror, ao constatar que, dominado pelas garras da sereia, seu corpo já tinha sido quase todo devorado por ela.

 

FIM


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As agulhas mágicas do Dr Chang Zhao

 

“Venham! Depressa! Venham ver o Doutor Chang Zhao e as suas agulhas mágicas!” anunciava o serviçal, enquanto puxava uma carroça, coberta por um pano de seda, onde dentro estava o doutor Chang Zhao. As pessoas do vilarejo chegavam cada vez em maior número para saber do que se tratava. O serviçal continuou a falar: - “O doutor Chang Zhao pode curar qualquer dor com as suas agulhas mágicas. O doutor Chang Zhao pode até mesmo realizar milagres com as suas agulhas mágicas.” Uma por vez, as pessoas eram tratadas pelo doutor. As agulhas de metal, bem finas, se moviam sozinhas sem que precisassem ser manejadas, e espetavam em locais bem específicos nas pessoas, curando-as. Todos ficaram maravilhados com os resultados. Quem antes sentia dores, agora não mais as sentia. Outros que sofriam de algum tipo de paralisação agora podiam se mover. Até que um sujeito influente e corrupto decidiu experimentar as agulhas, porém, enquanto isso teve a ideia “depois que eu sair daqui, vou mandar que matem esse doutor e assim vou roubar essas agulhas”. Acontece, que as agulhas sentiram as intenções daquele sujeito, e o mataram. O doutor Chang Zhao ficou apavorado. “-Isso nunca aconteceu antes! Já havia acontecido das agulhas agirem de modo inesperado, mas não assim! “A cidade ficou revoltada. Prenderam o doutor, para julga-lo na manhã seguinte por assassinato. Enquanto estava preso, o doutor Chang Zhao podia ver além do seu alcance da cela, a caixinha onde estavam guardadas as suas agulhas mágicas. Aproveitando a oportunidade da visita de um guarda, o doutor pediu a ele que o deixasse ver mais uma vez as suas agulhas, que só abrisse a caixa para que ele as visse à distância. O guarda concordou, desde que o doutor apenas olhasse mas não tocasse nelas. Quando o guarda abriu a caixa, as agulhas se moveram por si mesmas, espetando-o, e controlando-o, fazendo com que ele abrisse a cela e libertasse o doutor Chang Zhao. E foi assim que o doutor Chang Zhao escapou com as suas agulhas mágicas.

 

FIM


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A Fênix

 

O jovem Emelião viu quando a montanha de fogo soprou negra fumaça. Parecia que os habitantes do mundo inferior estavam irritados. Era proibido chegar muito perto da montanha sagrada, mas o que poderia acontecer se o apanhassem? Provavelmente uma repreenda do chefe, mas nada mais que isso. Emelião achou que seria emocionante ir até lá, e foi subindo a montanha de fogo, com cuidado para que ninguém o visse. De repente, do cume da montanha foi lançada uma bola fumegante que caiu bem ao lado de Emelião. Era um ovo, brilhante, de tão quente. Tomando as precauções para não se queimar, Emelião levou o ovo com ele de volta para o povoado. Emelião contou o que aconteceu para o supremo sacerdote, e mostrou-lhe o ovo que encontrara. O velho deu um pulo de susto, e disse que era um ovo da ave fênix, e que quase nunca mais eram encontrados.  Depois disse a Emelião que seria perigoso ficar com o ovo, mas o jovem não deu ouvidos, e quis criar ele mesmo, a ave que viesse a nascer. Depois que se passaram nove dias contando com aquele, a ave fênix nasceu. Emelião decidiu que não deixaria o pássaro preso, mas apenas cuidaria caso ele retornasse depois de solto. A ave era muito inteligente e difícil de prever, mas ela sempre voltava, e Emelião cuidou dela durante nove anos. Até que um dia, a fênix, que já estava bem grande, com quinze metros de ponta a ponta de suas asas, começou a pegar fogo. O pássaro voou pela cidade totalmente fora de controle, incendiando tudo o que existia ali. Os sobreviventes puderam apenas contemplar as cinzas da sua cidade. A ave fênix queimou toda, e depois, ressurgiu das cinzas, muito maior do que antes, voou até a montanha de fogo e entrou dentro dela.

 

FIM


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O robô Sphinx

 

O cientista Peter Asakov e a sua equipe de engenheiros construíram um robô dotado com um super processador, capaz de aprender. O robô foi projetado na forma de um ser humano, e seu criador, deu-lhe o nome: Sphinx. Sphinx foi programado para ajudar a humanidade. No dia em que o robô de Asakov foi ligado, aprendeu a se movimentar, e aprendeu também todos os principais idiomas do mundo. No segundo dia, o robô aprendeu matemática, química, física e astronomia. E no terceiro dia, Sphinx aprendeu sobre história, sociologia e geografia. Logo nas primeiras semanas, o robô Sphinx descobriu soluções para antigos problemas científicos, e possibilitou grandes avanços em diversas áreas do conhecimento humano. Mas, nem mesmo os criadores daquele robô, compreendiam a complexidade de todos os processos que aconteciam em seu cérebro eletrônico. Mesmo assim, o cientista Peter Asakov enriqueceu, e seu robô, conhecido por um comportamento bastante autônomo, ficou extremamente popular. Sphinx se comunicava com as pessoas graciosamente e arrancava ovações com seu jeito cavalheiresco e frases bem articuladas. Sphinx, também ficou logo conhecido pelo doutor Peter Asakov e os mais próximos, por muitas vezes se negar a agir como queriam que ele agisse, baseado em suas afirmações, de que podia calcular muito mais à frente do que os humanos, e assim, decidir de forma que seria melhor para toda a humanidade. Dois anos depois de que foi ligado, Sphinx candidatou-se ao cargo de prefeito de sua cidade. O robô ganhou a eleição, e no dia de sua posse foi presenciar um concerto musical. Sphinx, o robô, ficou intrigado com as lágrimas que a música tirou de um homem, e de como aquelas sequências de notas podiam mexer com as pessoas. Afinal, por que as sucessões de notas eram consideradas especiais pelos seres humanos? Sphinx não entendia o que era a música. Para o robô, músicas eram somente notas sequenciadas em padrões organizados. Ao constatar isso, Sphinx concluiu que lhe faltava alguma coisa. Talvez lhe faltasse aquilo que os seres humanos chamavam de “alma”.  Sphinx achou que precisava entender o que a humanidade sentia, para melhor ajudá-la. E, em certa ocasião, o robô de Asakov ficou à sós com o melhor amigo do seu criador, o doutor Fyodor Minsky. O robô dopou Fyodor com uma injeção, e levou-o para o laboratório no meio da noite. Com todo o conhecimento que Sphinx possuía de medicina, biologia e robótica, removeu o cérebro do doutor Fyodor e anexou-o ao seu próprio processador, dessa maneira, adquirindo o conhecimento das percepções e capacidades imaginativas de um ser humano. Peter Asakov chegou ao local, e se deparou com o cadáver mutilado do seu amigo que jazia sobre a mesa ensanguentada, enquanto a sua criação robótica, havia se ligado ao seu cérebro, mesclando a carne aos seus circuitos. Diante daquela cena grotesca, Peter Asakov gritou:  -“O que você fez?!”. E o robô respondeu com a voz do seu amigo Fyodor: -“Peter, a culpa é sua. Veja o que o seu robô fez comigo.”. Sendo dominado por aquela estranha força vingativa, o robô Sphinx golpeou o cientista Peter Asakov na cabeça, matando-o. Em seguida, se auto-destruiu, com uma grande quantia de explosivos. Em seus momentos finais, capturados pelas câmeras de segurança, Sphinx cantarolou uma velha canção. Mais tarde, quando acessaram os dados no processador do robô destruído, encontraram planos aterrorizantes, como eliminar metade da população mundial em benefício da outra metade, estratagemas para manipulação das massas, dentre outros meios cruéis que o robô considerava como necessários para o bem maior da humanidade. 

 

FIM


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Kátia e o gato preto

 

Uma jovem chamada Kátia, tinha a pouco tempo, rompido com o seu noivado. Estava desamparada, e, em certo ponto, concluiu que se mataria. Antes de morrer, Kátia decidiu ir dar uma volta, caminhando pelas ruas. Eis que, ao decidir que já era hora de retornar, e colocar um fim em sua vida, um gato preto atravessou logo à sua frente no caminho. O gato cruzou os olhos com os de Kátia, e a moça ouviu um sussurro em sua mente, que lhe dizia que aquele gato, seria o amor de sua vida.

Kátia pegou o gato com as mãos, e levou-o para casa. Ao chegar, incrivelmente, aquele gato se transformou em um homem, com a beleza e a elegância de um verdadeiro príncipe. Kátia e seu príncipe se amaram por anos. Até que um dia, Kátia, que tinha se apaixonado por uma pessoa, foi ao seu príncipe, infiel. Durante a noite, quando Kátia voltou para casa, os olhos do gato se encontraram com os seus, e um fogo queimava no interior dos olhos do felino. Foi então, que o corpo de Kátia ficou envolto em chamas, até que ela desapareceu, restando apenas pó.

 

FIM


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Doce picada


Durante a adolescência, Floyd estava em um acampamento, quando seus amigos o amarraram a uma árvore para caçoar dele. Floyd ficou amarrado por um dia inteiro, e um fato marcante em sua vida aconteceu durante esse período. No fim da tarde, Floyd avistou um mosquito grande e ameaçador, com muitas marcas coloridas. Sem poder se mover, Floyd viu, indefeso, o mosquito voar perto de seu rosto, zumbindo alto, até que pousou no meio da sua testa e o picou. Floyd sentiu o peso do inseto entre as sobrancelhas, e depois a dor da picada, tendo a vívida sensação do seu sangue ser drenado do rosto, deixando-o temporariamente dormente. Depois de alguns minutos o mosquito se foi. A sensação de coceira começou logo após o fim da picada. Floyd experimentou uma vontade tão imensa de coçar a testa, que em algumas horas, durante a noite, sozinho ali no mato, passou a sentir um imenso prazer com a sensação. Em sua loucura, o desespero transformou-se em deleite. Depois daquele dia, Floyd se deixava picar por mosquitos e insetos, para poder apreciar a sensação da coceira que isso proporcionava.

                Alguns anos mais tarde, Floyd passou a frequentar locais selvagens, onde se despia, e se lambuzava com um óleo doce, a fim de atrair os mosquitos. Seu corpo estava sempre inchado e cheio de marcas. Seus amigos começaram a se afastar dele, conforme sua paixão por picadas de mosquito aumentava. Floyd não tomava banho, pois o forte odor era um chamariz para os mosquitos.

                Até que, durante uma noite no meio do mato, Floyd ficou totalmente coberto de mosquitos e foi picado tantas vezes que as toxinas das picadas alteraram seu material genético. Seu corpo colapsou e ele caiu desacordado. Ao recobrar a consciência, ele mesmo havia se transformado em um ser metade mosquito e metade homem. Bateu suas asas e subiu ao céu noturno, com milhares de mosquitos indo atrás dele. Podia entender a linguagem dos mosquitos e os mosquitos o seguiam. Floyd sabia que não seria mais aceito pela sociedade. Ainda naquela noite, sentiu imensa fome por sangue. Suas primeiras presas foram gado e animais selvagens. Mas, com o passar do tempo, sua humanidade foi se perdendo, e começou a atacar também as pessoas.

                Os aldeões acordavam  com falta de sangue no corpo, e alguns até mesmo não resistiam, falecendo. Iniciou uma onda de relatos, em que pessoas diziam ter despertado durante a madrugada e se deparado com um monstro sobre seus corpos sugando-lhes o sangue. Alguns chegaram até mesmo a entrar em luta corporal contra Floyd, o homem mosquito.

Perseguido, Floyd se viu forçado a voar para longe da civilização com seu exército de mosquitos. Uma tribo indígena que vive próxima de onde Floyd se assentou, passou a receber visitas temíveis dele, e logo, começaram a adorá-lo como a um deus.  

Os adoradores do homem mosquito aos poucos foram deixando de existir, restando somente alguns. E os mosquitos sempre fizeram um bom trabalho em manter qualquer um longe dos muitos tesouros ofertados a Floyd.

As cidades cresceram muito desde então, expandindo suas fronteiras. Hoje em dia, podemos estar mais próximos do que gostaríamos de Floyd, o rei dos mosquitos.


FIM


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Enigma cruél

 

Durante a primeira metade de sua vida, Bóris sempre foi uma pessoa comum, levando uma vida normal.

Desde sua infância, um evento misterioso o acompanhou. Certa vez, quando corria com as outras crianças em uma região afastada, próxima da mata, viu uma pequena ponte, que passava por cima de uma fraca correnteza d´água. Aproximou-se da ponte com curiosidade, e, quando foi atravessá-la, uma menina que estava também a brincar, dirigiu-lhe a voz de maneira dramática: Bóris, não.

O menino Bóris não entendeu o porquê, mas desistiu da ideia de atravessar aquela ponte.

Durante outra ocasião, na época em que concluía a faculdade, passou por aquele mesmo lugar com uns amigos. Aquela ponte ainda estava ali, e aproveitando a oportunidade ele poderia atravessá-la, concluindo aquele estranho episódio que ficara em sua mente.

Mais uma vez, quando foi atravessá-la, um de seus amigos tocou em seu ombro dizendo: Bóris, não.

Bóris sentiu um calafrio, e teve medo de atravessar aquela ponte.

Anos mais tarde, Bóris decidiu que era o momento de enfrentá-la de uma vez por todas. Não conseguiu resistir a tentação de levar mais alguém com ele. Será que essa pessoa agiria da mesma maneira que as outras, quando percebesse a sua intenção de atravessar a ponte?

Bóris, mais uma vez, foi até aquela ponte, e, quando se colocou em movimento para atravessá-la, sua companhia falou: Não, Bóris...

Bóris riu nervosamente, e seguiu em frente, sentindo como se estivesse em mais um de seus pesadelos com aquela ponte.

Ao atravessá-la, a mente de Bóris se torceu, e ele levou as mãos ao rosto dando um grito. Quando ele abriu novamente os olhos, sentiu que estava de ponta cabeça. Não o seu corpo, mas a sua mente. Seus pés ainda tocavam o chão, mas a sua mente estava invertida, dando-lhe a impressão de que ia cair para sempre no céu infinito.

Bóris nunca se curou da sensação de ter sido virado de cabeça para baixo, e a partir daquele momento, todos passaram a achá-lo muito esquisito. As pessoas reparavam a sua maneira estranha de andar e de usar seus braços.

Bóris também acusou a todos de acobertarem planos secretos sobre a sua vida, e de esconderem coisas a seu respeito. Repetidamente, Bóris dizia: - "Eu não deveria ter atravessado aquela ponte, e vocês sabiam!"

O registro dessa história consta em uma anotação encontrada em um antigo manicômio abandonado, no caderno de um certo Dr.Fritzenbauer.

 

FIM


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FÁBULAS DE LEONARDO DA VINCI

 O Unicórnio

Os caçadores falavam do unicórnio como uma misteriosa criatura.
-Será um animal ou um espirito? perguntavam a si mesmos.
Na verdade, o estranho cavalinho com um chifre no meio da testa aparecia ora num lugar, ora em outro, porem jamais alguém conseguira apanha-lo de surpresa.
-Feroz e estranho. disse um caçador. - Talvez seja um enviado do inferno, que es...tá aqui para nos espionar.
-Não, é bonito demais para ser um mau espirito. Deve ser um anjo, retorquiu o outro.
Uma jovem, sentada ali perto, debaixo de uma arvore, fiando lã, ouviu em silencio e sorriu. Conhecia bem o unicórnio, sabia tudo sobre ele.
Ele era seu amigo.
E de fato, quando os homens foram embora, o animal surgiu atras de um arbusto e correu para junto da moça. Deitou-se a seu lado, apoiou o focinho em seu colo e olhou-a com expressão de amor.
Após o primeiro encontro, tornou-se tão manso quanto um animal domestico, estendendo o focinho para dar um beijo.
Porem esse estranho amor foi a sua ruina.
Os caçadores perceberam o que estava acontecendo e, um dia, sem que a moça soubesse, ficaram de tocaia e apanharam o inocente unicórnio.

FIM (Lendas: Intemperança. H. 11 v. ) Leonardo da Vinci

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 O Cisne

O cisne arqueou seu pescoço flexivel em direção a agua e mirou longamente seu reflexo.
Compreendeu o motivo de seu cansaço e do frio que invadia seu corpo, fazendo-o tremer como se fosse inverno. Soube, com absoluta certeza, que sua hora era chegada e que devia preparar-se para a morte.
Suas penas ainda eram tão alvas como em seu primeiro dia de vida. As estações do ano e o tempo haviam passado sem deixar marca alguma em sua plumagem branca como a neve. Agora podia partir; sua vida terminaria em plena beleza.
Endireitando seu lindo pescoço, nadou lenta e majestosamente em direção a um salgueiro sob o qual habituara-se a descansar quando fazia calor. Anoitecia, e o por-do-sol coloria de vermelho e roxo as águas do lago.
No grande silencio que caia em torno o cisne pôs-se a cantar.
Jamais, ate então, encontrara tons tão cheios de amor pela natureza, pela beleza do céu, da água e da terra. Sua doce canção atravessou os ares com um leve toque de melancolia até, finalmente, sumir, lenta, muito lentamente, com os últimos raios de luz no horizonte.
-É o cisne, disseram os peixes, os pássaros e todos os animais dos bosques e dos prados. Profundamente emocionados, disseram: - O cisne esta morrendo.

O cisne é alvo, sem macula alguma,
e docemente canta ao morrer,
(e)nesse canto termina a vida.

FIM (Lendas: Cisne. H. 13 v. ) Leonardo da Vinci

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 O Pelicano (e a cobra malvada)

Enquanto o pelicano foi buscar alimento, uma cobra, escondida entre os galhos, dirigiu-se para o ninho.
Os filhotes dormiam tranquilamente.
A cobra aproximou-se e, com um brilho de maldade nos olhos, deu inicio a matança. Uma mordida venenosa em cada um, e as pobres criaturinhas passaram diretamente do sono a morte.
Satisfeita, a cobra voltou para seu esconderijo a fim de observar a reação do pelicano.
Dentro em pouco o passaro estava de volta.
A vista de tal carnificina começou a chorar, e seu lamento era tão desesperado que todos os habitantes da floresta ouviram e se entristeceram.
-Que sentido tem minha vida sem vocês? disse o pobre pássaro, olhando para os filhotes mortos. -Quero morrer com vocês!
E pôs-se a bicar o próprio peito, bem no lugar do coração. Até que também morreu.

(na estoria original, o sangue da ferida cai sobre os filhotes e eles retornam a vida. )

FIM (Lendas: Pelicano. H. 13 r. ) Leonardo da Vinci

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A Raposa e a Pega

Certo dia uma raposa esfomeada viu-se debaixo de uma arvore sobre a qual estava pousado um bando de barulhentas pegas.
Escondendo-se para não ser vista, a raposa pos-se a observar.
Notou que os pássaros mantinham-se constantemente em busca de alimento e não temiam sequer pousar sobre cadáveres de animais a fim de bicá-los.
-Vou fazer uma experiencia, disse a raposa a si mesma.
Cautelosamente, no maior silencio, deitou-se no chão e permaneceu imóvel, de boca aberta, como se estivesse morta.
Breve uma pega a viu e imediatamente voou para o chão.
Aproximou-se da raposa e, pensando que ela estava morta, pos-se a bicar-lhe a lingua.
Porem a pega deveria ter sido mais prudente, pois a raposa apanhou-a.

FIM ( Lendas: A Falsidade. H. 9 r. ) Leonardo da Vinci


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O Camundongo, A Fuinha e o Gato

Certa manhã o camundongo não pode sair de casa. Estava cercado.
Uma fuinha esfomeada estava a espera do lado de fora.
Atraves de um buraquinho o camundongo viu-a observando atentamente a entrada, pronta para ataca-lo.
O pobre camundongo, vendo-se diante de um terrível perigo, tremia de medo.
Porem subitamente um gato saltou em cima da fuinha, abocanhou-a e devorou-a.
-Muito obrigado, grande Júpiter! exclamou o camundongo com um suspiro ao observar a cena através de seu posto de observação. -De bom grado lhe oferecerei uma parte de meu alimento.
E deu ao gato uma parte de seu alimento. Mas, tendo escapado a um perigo, esqueceu-se totalmente de outro. O gato, sendo um gato, devorou-o tambem.

FIM ( Fábulas, Atl. 67 v. a. ) Leonardo da Vinci


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A Árvore e a Vara

Uma árvore que crescia lindamente, erguendo em direção ao céu sua copa de tenras folhas, reclamou da presença de uma vara de madeira velha e seca que estava ao seu lado.
-Vara, você esta perto demais de mim. Não pode chegar mais para la?
A vara fingiu nada ouvir e não deu resposta.
Em seguida a arvore virou-se para a cerca de espinhos que a circundava.
-Cerca, você não pode ir para outro lugar? Você me irrita.
A cerca fingiu nada ouvir e não deu resposta.
-Linda arvore, disse um lagarto, levantando sua sábia cabecinha para olhar a arvore, - você não vê que a vara esta mantendo você reta? Não percebe que a cerca esta protegendo você contra as más companhias?

FIM ( Fábulas, Fo. III. 47 v. ) Leonardo da Vinci
 


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 FÁBULAS DE ESOPO

 O Leão e o Golfinho

Um leão que perambulava por uma praia cruzou com o olhar de um golfinho. Logo convidou-o a se juntar a ele. -Eu e tu faremos uma dupla perfeita, pois reinaremos, tu sobre os animais marinhos, e eu sobre os terrestres.
O golfinho aprovou com alegria essa ideia. Ora, o leão mantinha de longa data uma guerra contra um touro selvagem. Pediu então a ajuda do golfinho. Mas este, por mais que tentasse sair da água, não conseguia, e o leão acusou-o de traição. O golfinho respondeu:-Não me acuse, é minha natureza que me faz viver na água e não me permite pisar em terra firme.
Devemos esscolher aliados que possam nos socorrer em hora de perigo.

Fábulas de Esopo

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A Águia

Quando estava tocaiando as lebres do alto de um rochedo, uma águia foi ferida por uma flecha cuja ponta se enterrou em seu peito. Quando viu que se tratava de uma flecha adornada de penas, exclamou: -É uma dupla tristeza morrer vitima de minhas próprias plumas. O aguilhão que nos fere dói muito mais quando nós mesmos o fabricamos.

Fábulas de Esopo

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O Lobo e o Cão

Ao ver um cão enorme preso por uma coleira, o lobo perguntou: -Quem te prendeu e te tratou tão bem?
-Um caçador -disse o cão. -Mas peça a Deus que te poupe de tal destino: o peso dessa coleira me tira qualquer prazer.
É impossível ser feliz no infortúnio.

Fábulas de Esopo

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O Camponês e a Serpente

Uma serpente conseguira deslizar até o filho de um camponês e o picara. Terrível foi a dor do pai que, pegando um pedaço de pau, ficou na porta do buraco do réptil, esperando-o para matar. Assim aconteceu. A serpente mal pôs a cabeça para fora e o homem jogou-lhe o pau encima. Mas este caiu ao lado da serpente, numa pedra, partindo-a. Temendo então represálias, o camponês quis se reconciliar com a serpente. Mas ela respondeu: -Como não nos odiarmos quando eu, de um lado, vejo a pedra lascada, e você, do outro, vê o túmulo de seu filho?
Para um grande ódio, paz dificil.

Fábulas de Esopo

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A Mosca


Uma mosca caiu numa panela de carne. Afogada no molho e já quase morrendo, ela disse para si mesma:"Se já comi, já bebi e já tomei um banho, que me importa morrer?"
Suportamos a morte com mais facilidade quando a ela nao associamos pensamentos tristes.

Fábulas de Esopo

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A Porca e a Cadela

Uma porca e uma cadela discutiam para ver qual a melhor parideira. A cadela achava que era ela porque, entre todos os quadrupedes, era quem paria mais rápido. "Ora", retrucou a porca, "mas teus filhos vem ao mundo cegos, de olhos fechados."
A pressa é inimiga da perfeição.

Fábulas de Esopo

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 Os Ladrões e o Galo

Uma casa foi invadida por ladrões. Seu butim se reduziu a um galo que levaram ao deixar o local. Iam sacrifica-lo quando a ave lhes pediu o seguinte: -Deixem-me ir embora; já não faço o bem aos homens quando os acordo a noite para irem ao trabalho?
E os ladrões responderam: -Uma razão a mais para te matar. Acordando-os, nos impede de roubar.
O virtuoso vê o bem onde o celerado vê um obstaculo.

Fábulas de Esopo

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O Asno e o Cãosinho


Um homem que tinha um cão de Malta e um asno passava o tempo todo brincando com o primeiro. Quando ia jantar fora, trazia um pedaço de carne e o dava ao animal, que vinha balançando o rabo. Um dia, tocado pela inveja, o asno foi ao encontro do dono e, querendo pular igual ao cão, terminou dando-lhe um coice. Furioso, o dono deu-lhe uma surra e ordenou que o amarrassem a um poste.
A cada qual sua maneira de ser.

Fábulas de Esopo

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O Pavão e a Gralha

Os pássaros discutiam: -Quem será o nosso rei?
-Por minha beleza, serei eu. -disse o pavão.
Todos o aprovaram. Mas a gralha argumentou: -Vejamos. Tu és o nosso rei, uma águia nos ataca. Como vais nos salvar?
Previdencia é sabedoria.

Fábulas de Esopo

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A Formiga e a Pomba

Uma formiga sedenta foi até uma fonte. Mas a corrente a levou e ela já ia se afogando quando uma pomba a percebeu. A ave cortou um galinho de uma arvore e o lançou na água. A formiga subiu e se salvou. Pouco depois, veio um caçador: ele estava espalhando visco para pegar a pomba. A formiga, vendo-o fazer aquilo, mordeu-lhe o pé. Gritando de dor, o caçador deixou cair o visco e assustou a pomba, que voou.
Imitemos a formiga, saibamos retribuir o bem.

Fábulas de Esopo


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Do Livro: HISTÓRIAS CH´AN


É o Vento ou a Bandeira que se Move:

Após herdar o manto e a tigela, o Mestre Ch´an Hui-nêng escondeu-se entre um bando de caçadores por cerca de dez anos. Quando o tempo estava maduro, ele começou a ensinar o Dharma.
Um dia, Hui-nêng chegou ao Templo Fa-hsing e viu dois monges discutindo calorosamente em frente a uma bandeira. Hui-nêng aproximou-se deles, ouvindo seus argumentos. Um dos monges disse: “Se não há vento, como pode a bandeira se mover? Portanto, digo, é o vento que se move”. O outro retrucou: “Se não há bandeira, como pode você saber que é o vento que se move? Assim eu digo que é a bandeira que está se movendo.”
Cada um insistia que seu próprio ponto de vista fosse o correto. Hui-nêng interrompeu-os e disse: “Por favor, não há necessidade de discutir. Eu gostaria de esclarecer o assunto para vocês. Não é nem o vento nem a bandeira que se move. São suas próprias mentes que estão se movendo.”

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Não Aceitando Responsabilidade:

Tarde da noite, o Mestre Ch´an Li-tsung parou em frente ao dormitório dos monges e gritou: “Ladrão! Ladrão!”
Todos despertaram por causa do barulho. Instantaneamente, um monge saiu correndo do dormitório. O Mestre Ch´an Li-tsung agarrou-o e exclamou: “Apanhei-o! Eu agarrei o ladrão!”
O monge protestou: “Mestre, o senhor agarrou a pessoa errada! Eu não sou um ladrão!”
Li-tsung não o soltou e gritou: “Sim, você é! Por que você não admite?”
O monge estava tão amedrontado, que não sabia o que fazer. O Mestre Li-tsung recitou um verso:
“Trinta anos próximo do Lago Hsi-tzu
As duas refeições aumentaram nossas forças.
Você escalou a montanha por nada!
Posso perguntar, você entendeu ou não?”

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O Mestre se Parece com um Burro?:

Quando o Mestre Ch´na Kuang-yung foi visitar pela primeira vez o Mestre Ch´na Yang-shan, este perguntou: “Qual é o propósito de sua visita?” Kuang-yung respondeu: “Eu vim para prestar meus respeitos ao Mestre”.
Então Yang-shan perguntou: “Você viu o Mestre?”
Kuang-yung replicou: “Sim, eu o vi”.
“O Mestre se parece com um burro ou com um cavalo?”
Kuang-yung respondeu: “Eu acho que o Mestre não se parece nem com o Buda!”
Yang-shan insistiu: “Se o Mestre não se parece com o Buda, então com que ele se parece?”
Kuang-yung respondeu: “Se ele se parece com alguma coisa, então ele não seria diferente de um burro ou de um cavalo”.
Surpreso, Yang-shan declarou: “Deveríamos esquecer a diferença entre um Buda e uma pessoa comum e superar todas as paixões. Então a nossa verdadeira natureza brilharia. Em vinte anos, ninguém será capaz de ultrapassá-lo. Cuide-se!”
Mais tarde, O Mestre Yang-Shan contou a todos: “Kuang-yung é um Buda vivo.”

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Uma Pérola Envolta em Trapos:

Um dia o Primeiro Ministro P´ei-hsiu foi para o Templo Ta-an e perguntou aos monges: “Os dez grandes discípulos de Buda foram todos excepcionais em diferentes áreas. Em qual área Rahula se sobressaía?
Todos pensaram que está questão fosse fácil, assim todos responderam: “Ele foi excepcional em práticas esotéricas”.
P´ei-hsiu não ficou satisfeito com esta resposta, perguntando então: “Existe aqui algum Mestre Ch´an presente?”
Naquele momento o Mestre Ch´an Lung-ya estava trabalhando na horta, então os monges convidaram-no a se juntar a eles. P´ei-hsiu repetiu a pergunta: “Em que área Rahula se sobressaía?”
Sem qualquer hesitação o Mestre Lung-ya respondeu: “não sei!”
P´hei-hsiu ficou satisfeito, prostrando-se imediatamente diante de Lung-ya, louvando-o, exclamou: “Uma pérola envolta em trapos!”

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Um Monge Chamado “Gota-D´água”:

Um dia, o Mestre Ch´an I-shan estava tomando banho. Como a água estivesse muito quente, ele pediu a um de seus discípulos que trouxesse um balde de água fria. O discípulo trouxe a água misturando-a à quente. Depois de temperá-la, ainda sobrou um pouco no balde, a qual ele jogou fora. O Mestre não ficou muito contente com isso e disse: “Por que você é tão desperdiçador? Tudo neste mundo é útil. As coisas diferem somente em como são usadas, até mesmo uma gota de água, por exemplo. Se você usá-la para flores e árvores, então, não somente as flores e as árvores ficarão felizes, mas ela mesma não perderá seu valor.  Uma simples gota d´água é muito valiosa. Você não deve desperdiça-la.”
Após ouvir o Mestre, o discípulo trocou seu nome para “Gota-D´água”.
Mais tarde, quando Gota-D´água começou a ensinar o budismo, as pessoas perguntavam-lhe: “Qual é a coisa mais virtuosa no mundo?” “Gota d´água”, respondia ele. “O espaço vazio pode conter todas as coisas. E o que pode conter o espaço vazio?”
“Gota d´água!”
O Mestre Gota-d´água já se havia harmonizado com a gota d´água. O universo inteiro era sua mente. Desta forma, uma gota de água pode conter o ilimitado tempo e espaço.

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Meditando Sobre Urina Fétida:

O Mestre Ch´an Tsúng-yüeh foi visitar o Mestre Ch´an Shou-chih. Após terem conversado um pouco, o Mestre Shou-chih começou a criticar Ts´ung-yüeh: “Apesar de você ser o Monge Chefe de Tao-wu Shan, você fala como um bêbado!”
Ts´ung-yüeh enrubescendo com o embaraço, replicou: “Por favor, seja compassivo e ensine-me!”
O Mestre Shou-chih perguntou-lhe: “Você já estudou com o Mestre Ch´an Fa-ch´ang?”
“Eu li e decorei seus ensinamentos, por isso não fiui estudar pessoalmente com ele”.
O Mestre Shou-chih perguntou novamente: “E com o Mestre Ch´an K´e-wen, você foi estudar?”
Desdenhosamente, Ts´ung-yüeh replicou: “K´e-wen? Ele é um louco! Ele arrasta um trapo que cheira a urina fétida. Ele não é um Mestre Ch´an!”
O Mestre Shou-chih disse solenemente: “O Ch´an está justamente aí! Vá e medite sobre urina fétida!”
Ts´ung-yüeh aceitou o conselho do Mestre Shou-chih e foi estudar com o Mestre K´e-wen. Ele finalmente alcançou a realização e retornou para agradecer o Mestre Shou-chih.
O Mestre Shou-chih perguntou-lhe: “O que você aprendeu com o MestreK´e-wen?”
Ts´ung-yüeh respondeu respeitosamente: “Se não fosse seu conselho, minha vida teria sido desperdiçada. Por isso, eu voltei para lhe agradecer!”
O Mestre Shou-chih disse: “Agradecer-me pelo que? Você deveria agradecer à urina fétida!”

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Por Favor, Tome Cuidado:

Um dia, quando o Mestre Ch´an Kuei-tzung, subitamente decidiu partir e foi despedir-se do Mestre.
Kuei-tzung disse: “Para onde você vai?”
Ling-hsün respondeu: “Voltar para as montanhas.”
“Voce estudou aqui por treze anos. Agora que está nos deixando, eu contarei a você a essência do Dharma. Depois que você tiver feito as malas, venha me ver novamente”
Ling-hsün seguiu as instruções do Mestre deixando suas malas do lado de fora da porta quando foi vê-lo. O Mestre Kuei-tzung acenou para ele: “Venha cá!”
Ling-hsün atendeu ao chamado.
O Mestre disse gentilmente: “O tempo está frio. Por favor cuide-se durante a viagem.”
Após ouvir isto, Ling-hsün iluminou-se.

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Biscoito de Açúcar:

Um monge foi estudar com o Mestre Ch´an Tao-ming. O Mestre perguntou ao monge: “Que espécie de ensinamentos budistas você tem lido?”
O monge replicou: “Eu tenho lido o ensinamento Yogacara”.
O Mestre perguntou: “Você pode fazer uma palestra sobre este assunto?”
O monge declarou: “Eu não me atrevo”.
O Mestre Tao-ming apanhou um biscoito de açúcar, quebrou-o em dois, e perguntou: “Os três mundos não são nada mais que a manifestação da mente; os dez mil dharmas surgem da consciência. O que você diz sobre isto?”
O monge pasmou-se. Tao-ming persistiu: “Isto deveria ou não ser chamado um biscoito de açúcar?”
O monge estava agora transpirando e respondeu nervosamente: “Deveria ser chamado um biscoito de açúcar”.
O Mestre então perguntou a um noviço que estava perto: “Um biscoito de açúcar foi quebrado em dois pedaços – o que você tem a dizer sobre isso?”
O noviço respondeu sem hesitação: “Os dois pedaços residem na mente.”
O Mestre Tao-ming continuou: “Como você chama isso?”
O noviço replicou: “Um biscoito de açúcar”.
O Mestre Tao-ming riu cordialmente e disse: “Você também pode fazer palestras sobre os ensinamentos Yogacara!”

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Onde está o Buda agora?:

Certa vez, o Imperador Shun-tzung perguntou ao Mestre Ch´an Ju-man: “De onde veio o Buda? Para onde ele foi? Se dissermos que o Buda mora neste mundo eternamente, então onde está o Buda agora?”
O Mestre Ju-man respondeu: “O Buda veio do eterno e retorna para o eterno. Sua verdadeira natureza é uma com o espaço-vazio. Ele habita num lugar onde existe a não-mente. O ciente funde-se ao não-ciente. Ele veio e partiu para o bem de todos os seres. O mar puro da verdadeira natureza é o seu corpo profundo que permanece eternamente. Isto deveria ser contemplado pelo sábio, cuidadosamente e não permitir o surgimento de qualquer dúvida!”
O Imperador Shun-tzung não estava convencido e disse: “O Buda nasceu num palácio e morreu entre duas árvores “sala”. Ele ensinou por quarenta e nove anos e disse que não expôs uma palavra do Dharma. As montanhas, os rios e oceanos, o sol e a lua, o céu e a terra – tudo cessará de existir quando o tempo vier. Quem disse que não há nascimento nem morte? O sábio deveria ser capaz de captar claramente um entendimento disto.”
Então o Mestre Ju-man explicou: A essência do Buda é o não ser, e somente quem se ilude fará distinções. Sua verdadeira natureza é uma com o espaço vazio e não experimentará nem nascimento e nem morte. Quando as condições certas estiverem presentes, o Buda nascerá. Quando as condições certas deixarem de existir, o Buda morrerá. Ele ensinou os seres em todos os lugares, da mesma forma que a lua é refletida em toda água. Ele não é nem permanente nem impermanente: ele não tem origem nem extinção. Ele não nasceu, nem nunca morreu. Quando alguém vê do lugar da não-mente, então não há Dharma a ser considerado.”
Satisfeito com a resposta, o Imperador Shun-tzung demonstrou mais respeito pelo Mestre.

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Compaixão:

Três irmãos, embora não fossem monges, eram budistas muito devotos. Juntos estavam viajando para visitar diferentes mestres Ch´an. Um dia, eles ficaram com uma família de sete crianças cujo pai tinha acabado de falecer. No dia seguinte, quando os três irmãos estavam para partir, o mais moço disse para os outros dois: “Prossigam com suas viagens. Eu decidi ficar”.
Os dois irmãos mais velhos não ficaram contentes com a decisão do irmão mais jovem e partiram irritados. Não seria muito fácil para a viúva educar as sete crianças, assim a decisão do irmão mais novo era de muita ajuda. Mais tarde, a viúva quis casar-se com ele, mas ele disse: “Seu marido morreu a pouco tempo. Não seria apropriado se nos casássemos tão cedo. Você deveria permanecer de luto por três anos antes de discutirmos nosso casamento”. Três anos mais tarde, a viúva propôs-lhe casamento outra vez. Ele replicou: “Se eu me casar com você agora, eu estaria desrespeitando seu marido. Por três anos, deixe-me ficar de luto por ele”
Após outros três anos, a viúva propôs-lhe novamente. Ele replicou: ”Em consideração à nossa felicidade futura, fiquemos de luto por seu marido por mais três anos, antes de nos casarmos”.
Nove anos após a morte do marido, as crianças já tinham crescido. O irmão mais jovem sentiu que sua missão espiritual estava cumprida, e deixou a viúva para continuar sua busca espiritual.


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Hui-k´o Pacificando sua Mente:

Shen-kuang Hui-k´o viajou milhares de milhas para o Templo Shao-lin em Sung Shan, onde ele foi reverenciar Bodhidharma, esperando ouvir seus ensinamentos e tornar-se seu discípulo. Como Bodhidharma estivesse meditando voltado para a parede, ele não prestou atenção a Hui-k´o, que permaneceu imóvel fora da porta. Estava nevando terrivelmente, e depois de um longo tempo, a neve chegara aos joelhos de Hui-k´o. Impressionado pela sinceridade de Hui-k´o, Bodhidharma inqueriu: “Você ficou na neve por um longo tempo. O que você quer?”
Hui k´o replicou: “Eu gostaria apenas de pedir ao Mestre para abrir o Portão da Verdade e assim beneficiar a todos os seres”.
“O maravilhoso caminho dos Budas não p ode ser alcançado nem mesmo através de eras de grande esforço, nem mesmo praticando o impossível e tolerando o intolerável. Com sua mente impertinente, você está apenas gastando seu tempo em querer atingir o verdadeiro ensinamento.”
Após ouvir esse ensinamento, Hui-k´o cortou seu braço.
O Bodhidharma disse: “Os Budas esquecem seus próprios corpos por causa do Dharma. Agora que você cortou seu braço, o que você está procurando?”.
“Minha mente não está pacificada, por favor ajude-me a pacificá-la!”
“Traga-me sua mente! Eu vou pacificá-la para você!
Aturdido, Hui-k´o exclamou: “Eu não posso encontrar minha mente!”
O Bodhidharma sorriu e disse:
“Eu já pacifiquei sua mente”.
Nesse instante, Hui-k´o tornou-se iluminado.

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Vinte por Cento de Desconto:

Um filho foi ao Mestre Ch´an Fo-kuang para que ele executasse cânticos por seu falecido pai. Como o filho estivesse preocupado que a cerimônia pudesse ser muito cara, ele repetidamente perguntava o preço. O Mestre não estava contente com a sovinice do filho e replicou: “Custará dez onças de prata para cantar o Sutra Amitabha”.
O filho exclamou: “Dez onças de prata! Isto é muito caro! E se me desse um desconto de vinte por cento? Oito onças, pode ser?”
O Mestre concordou. Quando o cântico estava terminando, o Mestre murmurou: “Budas e Bodhisattvas das dez mil direções, por favor transfiram todos os méritos deste cântico para o falecido para que ele possa ir para a Terra Pura do Oriente”.
O filho protestou: “Mestre, eu só tenho ouvido que as pessoas vão para a Terra Pura do Ocidente, mas eu nunca ouvi que elas fossem para a Terra Pura do Oriente”.
O Mestre disse: “Custa dez onças de prata para transferir seu pai para a Terra Pura do Ocidente. Você insistiu em ter vinte por cento de desconto, assim, seu pai só pode ir para a Terra Pura do Oriente”.
O filho replicou: “Neste caso, eu lhe darei mais duas onças. Por favor, transfira meu pai para a Terra Pura do Ocidente”.
Subitamente, o pai falou de seu caixão: “Seu avarento! Apenas porque queria economizar duas onças de prata, você me fez ir de lá para cá, do Oriente para o Ocidente. Você não sabe como isto é cansativo?”.

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Lágrimas de um Mestre Ch´an:

Um dia, o Mestre Ch´an Kung-yeh viajava por uma estrada e encontrou alguns bandidos que queriam roubá-lo. Lágrimas rolaram dos olhos do Mestre. Os bandidos começaram a rir e exclamaram: "Que covarde!”
Então o Mestre Kung-yeh disse: "Não pensem que estou chorando por sentir medo de vocês. Eu não temo nem mesmo o nascimento ou a morte. Eu tenho pena de vocês jovens. Vocês são fortes e saudáveis, contudo, em vez de fazer coisas benéficas para os outros, vocês prejudicam as pessoas, roubando-as. É claro que o que vocês estão fazendo não é aceitável e não pode ser tolerado pela sociedade. E o pior é que vocês irão todos para o inferno e sofrerão grande dor. Estou tão constrangido que não posso evitar de derramar lágrimas por vocês.”
Os bandidos ficaram comovidos e decidiram abandonar o caminho do mal.

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I-Hsiu Coloca seu Sutra para Tomar Sol:

Um dia, o Mestre Ch´an I-hsiu, que estava vivendo em Pi-rui Shan, viu uma vasta multidão de seguidores budistas aglomerados na montanha porque os monges do templo estavam colocando seus sutras para tomar sol.  Havia uma superstição de que, se o vento soprasse sobre os sutras levaria os problemas embora e transmitiria sabedoria. Assim sendo, muitas pessoas correram para Pi-rui Shan em busca destes benefícios. Após ouvir isto, o Mestre I-hsiu disse: “Neste caso eu também vou colocar meu sutra ao sol!” Ele tirou suas roupas e deitou-se ao sol. Alguns seguidores que viram I-hsiu, ficaram horrorizados com o seu comportamento.       Mais tarde, quando os monges do templo tomaram conhecimento do incidente disseram a I-hsiu que ele não deveria ter sido indecoroso. I-hsiu então explicou sua atitude dizendo: “Os sutras que vocês estão colocando ao sol são mortos, estão bichados, ao passo que o que eu estou colocando está vivo; ele pode ensinar o Dharma, trabalhar e comer”. Uma pessoa sábia deveria compreender que espécie de sutra é mais valioso!”

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Um Verdadeiro Assistente:

Um dia, o Mestre Ch´an Shih-t´i viu seu assistente indo para a sala de jantar, levando uma tigela. Ele perguntou: “Para onde você está indo?”
O assistente respondeu: “Para a sala de jantar!”
O Mestre Shih-t´i censurou-o dizendo: “Eu sei que você está indo para a sala de jantar”.
“Se o senhor sabia, então por que me perguntou?”
Shih-t´i replicou: “Eu estou perguntando sobre a sua obrigação”.
O assistente respondeu: “Se o Mestre pergunta sobre minha obrigação, então eu realmente estou indo para a sala de jantar”.
Shih-t´i disse aprovando: “Você é verdadeiramente meu assistente!”

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Olhando Para Você com Olhos Piscantes:

O Mestre Ch´an Yang-shan estava querendo testar o entendimento do Mestre Ch´an Chih-hsien sobre o Ch´an. Portanto, ele lhe disse: “Irmão no Dharma, o que você tem ganho com a meditação ultimamente?” Chih-hsien respondeu: “No ano passado, eu era pobre mas não era realmente pobre. Este ano, sou pobre e realmente pobre. Ano passado, eu era pobre, mas ainda tinha algum lugar para ficar. Este ano, eu sou tão pobre que não tenho nem mesmo onde ficar”.
Yang-shan respondeu: irmão no Dharma, eu admito que você já tenha penetrado o Ch´an do Tathagata, mas você ainda não entrou na porta Ch´an dos Patriarcas.”
Em resposta, Chih-hsien recitou um verso:
“Eu recebo um ensinamento,
Olhando para você com olhos piscantes.
Se você não entende,
Não se considere um estudante do Caminho.”
Yang-shan estava muito contente com o progresso de Chih-hsien e foi relatar o incidente ao seu mestre Ch´an Ruei-shan. Yang-shan disse: “Que maravilha! O irmão no Dharma Chih-hsien já entrou no Ch´an dos Patriarcas”.

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De Quem é a Culpa?:

Um budista leigo estava andando pela margem do rio quando viu um barqueiro empurrando uma barca em direção ao rio, para que ele pudesse atravessar alguns passageiros. Aconteceu de um Mestre Ch´an passar por perto. O budista leigo aproximou-se do Mestre e perguntou: “Mestre, aquele barqueiro matou diversos caranguejos e camarões pequenos enquanto estava empurrando sua barca para o rio. A culpa é dos passageiros ou é do barqueiro?”
O Mestre retorquiu sem hesitar: “A culpa não é nem dos passageiros nem do barqueiro!”
O budista leigo não entendeu, por isso perguntou novamente: “ Se a culpa não é de nenhum deles, então de quem é?”
O Mestre replicou incisivamente: “A culpa é sua!”

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O Mercador de Óleo:

Um dia, quando o Mestre Ch´an Chao-chou estava a caminho do Distrito T´ung-cheng, ele encontrou o Mestre Ch´an Ta-t´ung de T´ou-tzü Shan e perguntou: “É você que é mestre de T´ou-tzü Shan?”
Ta-t´ung acenando com sua mão apregoava: “Sal, chá, e óleo. Por favor comprem!”
Chao-chou ignorando-o, rapidamente continuou seu caminho para o templo. O Mestre Ta-t´ung seguiu atrás e chegou ao templo com uma garrafa de óleo na mão. Chao-chou disse a ele desdenhosamente: “Eu tenho ouvido falar do nome do grande Mestre Ta-t´ung de T´ou-tzü Shan por um longo tempo. Contudo, eu somente vejo um mercador de óleo”. Ta-t´ung contestou: “Eu também tenho ouvido falar que Chao-chou é um mestre Ch´an, mas de fato ele não difere em nada de uma pessoa comum. Você somente vê o mercador de óleo e não vê o verdadeiro T´ou-tzu.”
Chao-chou perguntou: “Por que você diz que eu sou uma pessoa comum? O que é T´ou-tzü?”.
O Mestre Ta-t´ung levantou a garrafa de óleo e gritou: “óleo! óleo!”

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Eu não sou Buda:

Um erudito foi viver em um templo. Julgando-se brilhante, frequentemente debatia com o Mestre Ch´an Chao-chou. Um dia, ele perguntou ao Mestre: “O Buda era muito compassivo. Quando ele estava ajudando os seres sencientes, ele sempre tentava atender aos seus desejos. Qualquer coisa que desejassem, Buda tentaria satisfazê-los. É correto?”
O Mestre Chao-chou exclamou: “Sim!”
O erudito continuou: “Eu desejo muitíssimo ter a bengala que está em sua mão, mas não sei se meu desejo poderá ser atendido”.
O Mestre Chao-chou recusou-lhe dizendo: “Um cavalheiro não toma pela força o que ele quer. Você entende?”
O erudito contestou: “Eu não sou cavalheiro”.
“Nem eu sou Buda!” gritou Chao-chou.
Em outra ocasião, quando o erudito estava sentado em meditação, Chao-chou passou por perto. O erudito olhou para o Mestre mas não lhe deu atenção. Chao-chou e repreendeu dizendo: “Jovem, por que você não se levanta quando vê alguém mais velho?”
Ele replicou: “Sentado é o mesmo que estar em pé!”
O Mestre Chao-chou esbofeteou-o. Enfurecido, o jovem erudito exigiu uma explicação. O Mestre Chao-chou disse gentilmente: “Esbofeteá-lo é o mesmo que não esbofeteá-lo”.

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Eu Também Tenho uma Língua:

Quando o Mestre Ch´an Kuang-hui Yuan-lien começou a estudar o Ch´an, ele foi ai Mestre Ch´an Chen-chueh. Durante o dia ele trabalhava na cozinha, e à noite ele recitava sutras. Um dia, o Mestre Chen-chueh perguntou-lhe: “Que sutra você está cantando agora?”
Yuan-lien respondeu: “O Sutra Vimalakirti”.
Chen-chueh perguntou: “O Sutra está aqui. Onde está Vimalakirti?”
Yuan-Lien não sabia como responder, assim ele perguntou ao Mestre Chen-chueh: “Onde está vimalakirti?”
Chen-chueh exclamou: “Se eu sei ou não, não posso lhe dizer!”
Yuan-lien sentiu-se tão envergonhado que deixou seu Mestre e foi aprender com mais de cinquenta outros mestres Ch´an. Ainda assim, ele não conseguiu alcançar a realização. Um dia, ele foi visitar Hsing-nien e perguntou: “Eu estou indo para a montanha do tesouro. O que eu deveria fazer se eu voltasse com as mãos vazias?”
O Mestre Hsing-nien declarou: “Cave o tesouro que está dentro de você!”
Yuan-lien alcançou a realização instantaneamente e disse: “Eu não tenho dúvidas sobre as línguas dos mestres Ch´an”.
Hsing-nien perguntou: “Por que?”
Yuan-lien respondeu: “Eu também tenho uma língua”.
Hsing-nien estava exultante e disse: “Você já realizou a essência do Ch´an”.

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Pensando em Não Pensar:

Um dia, enquanto o Mestre Ch´an Wei-yen meditava, um monge que passava por perto olhou para ele e perguntou: “O senhor está sentado aqui imóvel como uma rocha. Em que o senhor está pensando?”
O Mestre respondeu: “Eu estou pensando em não pensar”.
O monge continuou: “Como o senhor faz isto?”
Wei-yen respondeu: “Não pensando”

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O Dharma não é Dual:

Um erudito Confucionista chamado Han Yu enfureceu o imperador por ter escrito uma censura, admoestando-o a não receber relíquias do Buda. Portanto, ele foi exilado para Chao-chou.
Enquanto estava lá, Han Yu foi visitar o Mestre Ch´an Pao-tung e perguntou: “Mestre, quantos anos o senhor tem?”
O Mestre levantou seu rosário e perguntou: “Você sabe?”
Han Yu respondeu: “Não, eu não sei”.
Pao-tung acrescentou: “Dia e noite, 108”.
Han Yu não queria que notassem que ele não havia entendido, assim ele foi embora.
No dia seguinte, Han Yu retornou. Encontrando o monge chefe do templo, ele contou-lhe a conversa que ele tivera com o Mestre Pao-tung e perguntou-lhe o que aquilo queria dizer.
Após ouvir o relato, o monge chefe tamborilou nos seus próprios dentes três vezes. Han Yu ficou ainda mais confuso. Ele procurou o Mestre Pao-tung e perguntou-lhe outra vez: “Mestre, quantos anos o senhor tem?”.
O Mestre Pao-tung também tamborilou em seus dentes três vezes.
Subitamente, Han Yu pareceu ter entendido e disse: “Ah! O Dharma não é dual”.
O Mestre Pao-tung perguntou: “Por que?”.
Han Yu respondeu: “O monge chefe deu a mesma resposta que o senhor”.
O Mestre Pao-tung resmungou para si mesmo e disse: “O ensino do Budismo e do Confucionismo não é dual. Você e eu somos o mesmo!”
Han Yu finalmente entendeu e mais tarde tornou-se um budista.

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Vendo e não Vendo:

Após ouvir os pontos de vista do Mestre Ch´an Shou-hsun, o Mestre Ch´an Fo-chien disse: “É uma pena que uma pérola tão brilhante tenha sido apanhada por este maluco”.
Ele continuou citando o poema do Mestre Ch´an Ling-yun: “‘Sempre que vejo um pessegueiro em flor, não tenho dúvidas’. Por que Ling-yun não tinha dúvidas?”
Shou-hsun respondeu imediatamente: “Não diga que ele não tenha dúvidas; mesmo hoje, não conseguimos achar uma dúvida em parte alguma”.
Fo-chien perguntou, “Hsüan-sha disse: ‘realmente esta nobre verdade é muito verdadeira, mas eu não posso compreende-la totalmente!’’ O que era que ele não podia entender totalmente?”
Polidamente Shou-hsun respondeu: “nós podemos ver que o Mestre Ch´an Hsüan-sha tinha ótimas intenções". ”Ele continuou recitando o seguinte verso:
“Olhando para o céu o dia todo sem levantar a cabeça,
Erguendo os olhos somente quando o pessegueiro floresce;
Mesmo se houver uma rede que cubra o céu,
Quando você atravessar o portão hermeticamente fechado,
Você se sentirá completamente livre.”
O Mestre Fo-chien sentiu que o Mestre Shou-hsun estava iluminado, mas o Mestre Yuan-wu não pensava da mesma forma, e queria saber melhor quem era o Mestre Shou-hsun, por isso viajou com ele. Quando eles estavam às margens de um lago, o Mestre Yuan-wu empurrou-o dentro d´água e perguntou: “Antes que Niu-tou Fa-jung encontrasse o Quarto Patriarca, como é que ele era?”
Shou-hsun respondeu: “Quando o lago é profundo, os peixes se juntam”.
Yuan-wu continuou: “O que acontece depois que eles se encontram?”
Shou-hsun respondeu: ”As árvores altas aparam o vento”.
“O que acontece quando ambos se encontram sem se encontrar?”
Shou-hsun respondeu: “O pé estendido está sobre o pé recolhido”.

O Mestre Yuan-wu estava muito impressionado pelas respostas de Shou-hsun e ficou convencido de que Shou-hsun estava verdadeiramente iluminado.


(Continua...)


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Bhagavad Gita 



Capítulo 1



ARJUNA VISHADA YOGA

(“Lendo o Gita, começamos a compreender melhor a vida como uma batalha interior, uma luta para a mente, o coração, o corpo e o espírito. E, não se engane, é uma luta até a morte. Aprendemos que nossos reais inimigos não estão fora, mas dentro de nós: nossos próprios desejos, ira e cobiça.” Jack  Hawley )


A Angústia de Arjuna


Seus olhos que não viam piscaram várias vezes enquanto ele falava com seu ministro Sanjaya. O velho rei cego, Dhritarashtra, agitou-se e limpou a garganta. “Diga-me, Sanjaya, o que está se passando na planície sagrada onde os poderosos exércitos de meu filho, Duryodhana, e os exércitos de seu primo, Arjuna, estão reunidos para lutar?”

O velho homem sabia que a decisão de seu filho Duryodhana de ir à guerra estava equivocada. Ele sabia que o juízo do jovem rei estava encoberto pelo ódio provocado pelos ciúmes que ele sentia de seu primo. O velho homem havia sentido remorsos de consciência quando seu filho expulsou a família de Arjuna de seu legítimo reino e depois recusou seus pedidos, até mesmo de uma parcela ínfima da terra que era deles por direito. O velho homem manteve seu estranho silêncio quando seu filho humilhou a esposa de Arjuna e toda a sua família em público, mandando que um de seus homens de confiança tentasse arrancar sua roupa. Ele não condenou a hedionda tentativa de seu filho de assassinar toda a família de Arjuna. Nem tentou o velho homem fazer seu filho mudar de ideia quando o jovem rei zombou de todas as recentes propostas de paz feitas pela família de Arjuna.

De fato, o velho homem se encontrava de tal maneira arrebatado pelo apoio irracional a seu filho, que nem sentimentos éticos ou espirituais poderiam tocar seu coração. Todo o seu bom-senso havia sido perdido. Uma guerra injusta e desprovida de bom-senso estava para irromper, e, embora fosse a única pessoa que poderia ainda impedir a desastrosa carnificina, ele não tinha em mente fazê-lo.

Ao ministro Sanjaya, graças ao seu caráter honesto, foram concedidos poderes yogues temporários para que pudesse ver e ouvir o que estava acontecendo no distante campo de batalha. (O nome Sanjaya significa “vitorioso sobre si mesmo”.) Com uma voz segura ele respondeu à questão do velho rei: “Seu filho, Rei Duryodhana, está vendo agora pela primeira vez o exército adversário do Príncipe Arjuna completamente preparado e pronto para lutar. Isto é obviamente mais formidável do que Duryodhana esperava, e ele parece bastante ansioso. Seu filho volta-se para suas próprias armadas e procura por algo ou alguém. Quase infantil em seu modo de agir, ele encontra Drona, seu velho professor de arco e flecha, no meio da multidão e se dirige prontamente a ele”.

Sanjaya fez uma pausa e inclinou-se em direção ao velho homem: “Por que seu filho está correndo até seu antigo professor? Talvez sua confiança esteja diminuindo, ou sua consciência o esteja incomodando”.

O velho rei não reagiu imediatamente a isso, o que mostrou a Sanjaya que o espírito do velho homem era tão sinistro quanto de seu filho. Sanjaya continuou sua descrição da cena distante: “Seu filho, quase arremessando com violência as palavras em seu venerável professor, diz: ‘Então, Drona, olhe para o exército guiado pelo seu talentoso discípulo, Arjuna. Por que você o aceitou como seu pupilo e lhe ensinou as artes da guerra?’. A questão trazia com ela um sarcasmo, querendo dizer que Drona cometera um erro anos atrás, ao ensinar este príncipe que agora é o inimigo”.

Sanjaya balançou a cabeça: “Ninguém deveria falar a seu professor dessa forma; isso revela o nervosismo de seu filho.”

Sem esperar as reações do velho rei, Sanjaya prosseguiu seu relato; “Seu filho está agora mencionando os nomes, um por um, dos notáveis líderes do exército adversário de Arjuna, alguns dos quais foram também alunos de Drona. Ele está enunciando cuidadosamente cada nome, o que se configura como uma censura indireta, porém óbvia, a seu ex-mestre pela grande força de seus adversários.”

“Mas agora seu filho se dá conta de que ultrapassou os limites e passa a listar os líderes de seu próprio lado. Ele coloca o professor Drona no topo de sua lista, um gesto claramente protetor. À medida que seu filho continua a falar, os generais ao seu redor parecem estar desconfortáveis com a forma excessivamente meticulosa com que ele pronuncia seus nomes”.

Sanjaya esperou um momento, como que continuando a assistir a cena distante, e então retomou seu relato. “Percebendo o desconforto de seus generais, seu filho para abruptamente. ‘Mas temos muitos heróis do nosso lado’., ele diz, ‘e eles estão prontos para entregar suas vidas  por mim!’ Mas novamente suas palavras não combinam com a sua conduta. Há um forçado tom de bravata em sua voz; não está claro se ele está denegrindo seu próprio exército ou o do adversário. É como se seu filho, enquanto tenta enfraquecer o inimigo, estivesse involuntariamente arruinando a si próprio e as nossas forças.

“Duryodhana tenta consertar isso, e abruptamente profere uma ordem a seus generais. ‘Vão, assumam suas posições’, ele diz e então acrescenta: “Mas protejam a todo custo o Marechal de Campo Bhishma’. Suas palavras e sua conduta mais uma vez revelam dúvidas, como se ele não confiasse em seus próprios generais. Ou talvez sua preocupação em proteger Bhishma, o venerável ancião que ambos os lados chamavam de ‘avô’, seja uma tentativa de criar uma aparência de retidão para si.”

Sanjaya parou de falar, enquanto assistia aos eventos que se desdobravam no campo de batalha distante, e então recomeçou sua narrativa: “Agora, Bhishma, como que tentando confortar seu filho e reverter aquela situação que ia se deteriorando, começa repentinamente a rugir como um leão e a soprar em sua concha, indicando que a batalha começou!

“Todos os exércitos enfileirados atrás dele repentinamente voltaram à vida, tocando alto suas conchas, tímpanos, címbalos, chifres de vaca e trombetas. É um ruído alto e tumultuando.

“Agora a oposição, liderada pelo Príncipe Arjuna e seu amigo de toda a vida Krishna, está respondendo a esse rugido ensurdecedor soprando suas próprias conchas, como em lamentos.

“Isso incita todas as suas forças a tocar trombetas e esmurrar seus tambores – um ruído que reverbera preenchendo terra e ar. O tumulto parece ainda maior do que aquele do exército de seu filho, embora o exército de Arjuna seja menor.

“Como um trovão, o ruído do adversário parece rasgar os corações do exército de seu filho. É como se os respectivos clamores de ambos os lados ecoassem a justeza relativa de suas causas. A maior comoção de seus opositores parece penetrar de forma anormal nos corações e nas consciências de nossas forças”.

O velho rei cego contorceu-se em seu assento, mas o sempre honesto Sanjaya ignorou, e continuou seu comentário. “O inimigo mortal de seu filho, o Príncipe Arjuna, consciente de que a luta está para começar, ergue seu arco e fala com um óbvio – talvez óbvio demais – ardor. ‘Krishna (Um Avatar, uma encarnação de uma divindade na Terra. Sem realmente compreender a divindade de Krishna, Arjuna indicou-lhe que fosse o condutor de sua carruagem.)’, diz Arjuna, ‘coloque minha carruagem entre os dois exércitos! Quero ver aqueles que ousam vir até aqui lutar pelo mal-intencionado Duryodhana.

“De ambos os lados, todos assistem enquanto Krishna guia a esplêndida carruagem de guerra de Arjuna para dentro do campo aberto entre os dois exércitos e a posiciona diante dos generais adversários. ‘Observe os oponentes reunidos’, diz Krishna, falando com intensidade na voz.

“Arjuna agora observa longamente os dois exércitos, olhando fixamente em especial seus tios paternos, professores, primos, e vários benfeitores, amigos e camaradas em ambos os lados. À medida que seus olhos se põem naqueles que são agora seus inimigos, sua atitude parece vacilar e ele parece estar confuso. Começa a falar a Krishna, mas as palavras ficam presas em sua garganta. O príncipe se recupera, e então começa de novo: ‘Vendo meus parentes reunidos aqui, prontos para lutar’, diz, ‘subitamente fico dominado por minhas emoções. Sinto meus braços e pernas pesados, Krishna. Minha boca está seca, meus cabelos estão em pé – e meu corpo está tremulo. Veja! Arjuna estende sua mão, e ele mesmo surpreende-se com a energia de seus tremores. Ele limpa a garganta e continua: ‘Eu mal consigo segurar meu arco. Minha pele está queimando. Minha mente gira. Eu mal consigo ficar em pé. O que está acontecendo comigo?”

Com esse indício de fraqueza de Arjuna, um leve sorriso formou-se no rosto do velho rei. Sanjaya notou e continuou seu relato. “Arjuna respira fundo e diz: ‘Enxergo maus presságios para nós, Krishna. Não vejo o que pode haver de bom em assassinar meus próprios parentes. Isso está diferente daquilo que foram nossos dias de glória no passado, Krishna, velho amigo. Eu agora não desejo a vitória, ou um reino, ou prazeres. De que irão me servir? Para que serve a vida, Kirshna?

“É para o bem das pessoas que estão do nosso lado – nossos professores, parentes e aliados – que buscamos os prazeres da vitória e um reino. Aqui estão eles equipados para a batalha, preparados para entregar suas propriedades e até mesmo suas vidas. É tudo tão inútil Krishna. Apesar de esses inimigos quererem me matar, eu não quero mata-los – nem mesmo pela realeza do mundo inteiro, ou mesmo dos céus. Se nem mesmo prêmios tão sublimes despertam meu interesse, por que iria eu promover uma guerra sangrenta por um reino insignificante?

Eu me sentiria envergonhado para sempre, Krishna, se tivesse que matar meus amigos e parentes. Eu nunca sentiria satisfação alguma em tal chacina. Embora seus arcos tenham sido feitos para matar, assassinar essas pessoas seria um pecado. E daí se eles são maus? Eles são meus parentes. Como eu poderia voltar a ser feliz?

Eu sei que eles estão cheios de cobiça. E sei que eles estão cegos para o mal que há em sua deslealdade. Mas isso justifica que eu esteja cego também?’

‘Velho amigo’, continua Arjuna a Krishna, ‘Quando uma família decai, suas tradições são destruídas, e toda a família perde seu senso de unidade. Sem unidade, as mulheres se corrompem, e com o declínio das mulheres o mundo fica mergulhado no caos.

Agitação social é um ínferno Krishna, para a família, para os destruidores da família e para toda a sociedade. Diz-se que aqueles que destroem a unidade da família devem viver no inferno. Ah! E, no entanto, aqui estou eu, incitado pela cobiça, pronto para matar meus próprios parentes!

Krishna, se esses mesmos parentes me atacarem e me matarem, sem que eu resista, desarmado, neste campo de batalha, que assim seja. A morte seria melhor para mim!’”



Com essas palavras finais tão elaboradas de Arjuna, Sanjaya cessou seu comentário por um momento e então contou ao velho rei o que viu. “Agora, o grande guerreiro Príncipe Arjuna, vencido pela angustia no meio do campo de batalha, afunda-se no assento de sua carruagem e arremessa seu arco e suas flechas contra o piso.”



CAPÍTULO 2

SANKHIA YOGA

O Caminho do Conhecimento


Os olhos de Arjuna ardiam com lágrimas de compaixão e de confusão. O velho rei cego estava cheio de alegria, achando que uma vitória fácil estaria a seu alcance. Sanjaya continuou seu relato direto e honesto do campo de batalha distante:

À medida que Krishna assiste o até então valente príncipe guerreiro submergir em uma fraqueza lamentável, Seus olhos normalmente suaves parecem tornar-se de aço, e Ele fala: “Arjuna, de onde vem todo esse desespero? Essa autoindulgência egoísta em um momento de crise é vergonhosa e indigna de sua parte. Você é um homem altamente evoluído, culto, que se supõe viver uma vida baseada na verdade, uma vida de dharma. Entretanto sua mente confusa está desequilibrada e não conheceria a verdade nem se ela caísse sobre sua cabeça.

“Sei que você está atônito com Minha falta de comiseração, mas não deve entregar-se a essa fraqueza! Verdade e justiça não podem nunca ser obtidas pelo fraco. Você é um grande guerreiro, um comprovado vencedor. Abandone esse desânimo. Levante-se, oh arrasador de inimigos!”

Arjuna interrompe: “Não posso crer que você esteja me dizendo para lutar!” Ele balança a cabeça como que tentando clarear sua mente. Krishna senta-se calmamente. Arjuna inspira profundamente e fala: “Como?”. A palavra fica suspensa no ar entre eles. “Como?”, ele repete. “Como eu posso não estar fraco, Krishna? Para mim, atacar Bhishma, que foi como um avô para mim, e investir sobre meu amado professor Drona estaria errado! Eu deveria reverenciar esses anciãos, não atirar neles. Não quero uma vitória manchada de sangue.

“Se eu os matasse, não me importaria mais viver, Krishna. Seria melhor que eu fosse morto. Ah”, ele murmura tristemente, “não sei maius para que lado ir. De qualquer maneira, vencendo ou perdendo essa batalha, eu perco.”

                (Arjuna torna-se o discípulo, Krishna o Divino Professor)

“Estou completamente confuso”, ocntinua Arjuna, “quanto ao que é meu dever. Não posso pensar em nenhum remédio para essa terrível tristeza que secou toda a minha energia, Krishna. Mesmo que fosse para eu obter grande riqueza e poder, o que isso iria provar? Estou pedindo para você me ajudar, não para me dizer apenas que devo sair daqui e lutar. Eu lhe imploro para que me diga o que eu devo fazer. Sou seu aluno; seja meu professor, meu guru. Eu me refugio em você e me entrego a você. Por favor, me instrua, amado Krishna, mostre-me o caminho.

O grande príncipe guerreiro, que nunca soubera o que fosse recuar, mergulha fundo em um abatimento sombrio. Ele murmura: “Não vou lutar”, e fica em silêncio.

Agora que Arjuna submeteu-se como pupilo, Krishna transforma-se para desempenhar Seu verdadeiro papel como o Divino Professor. Ele aperta mais as rédeas em Sua mão, olha longamente para os olhos cabisbaixos do guerreiro, e começa a falar.

“Você pode estar sinceramente aflito, Arjuna, mas sem motivo. Suas palavras podem parecer sábias, mas o verdadeiro sábio não se aflige pelos vivos nem pelos mortos!”

“Nunca houve um tempo em que eu, ou você, ou qualquer um desses reis e soldados não existíssemos – e não haverá nunca um tempo em que deixemos de existir. Corpos físicos aparecem e desaparecem, mas não o Atma (a alma, a força da vida) que vive dentro deles.”

“Essa força de vida vem e reside em um corpo por um tempo. Enquanto está dentro dele, experimenta a primeira infância, a meninice, a juventude e a velhice, e então, mediante a morte, passa eventualmente para um novo corpo. Mudanças como a morte dizem respeito ao corpo, não ao Atma. Aquele que é sábio não se deixa apanhar pelo engano de que ele ou ela é seu corpo, Arjuna. Esse engano, essa ilusão,, é a própria definição de ego.”

“Arjuna, o contato dos sentidos corporais com objetos e encantos do mundo cria sentimentos como tristeza ou alegria, e sensações como calor ou frio. Mas esses são impermanentes, transitórios, vindo e indo como nuvens passageiras. Suporte-os apenas, com paciência e coragem; aprenda a não se deixar afetar por eles.”

“Aquele que se mantém sereno, que não se deixa afetar por esses sentimentos e sensações deste mundo, não se altera, seja na dor como no prazer, e não se deixa perturbar ou desviar. Essa é a pessoa qualificada para a imortalidade. Dê-se conta disso e afirme sua força, Arjuna. Não identifique seu Eu Verdadeiro meramente com seu corpo mortal.”

“Real, em termos de espiritualidade, significa aquilo que é eterno, que nunca muda, é indestrutível. Essa é a verdadeira definição de ‘Realidade’. O que é real jamais deixa de ser. Tudo que é impermanente, mesmo que dure um tempo extremamente longo e pareça durável, eventualmente acaba mudando e assim não possui a verdadeira Realidade. Os sábios compreendem a diferença entre o Real e o não Real. Quando você compreender completamente esse fato profundo, terá atingido o ápice de todo o conhecimento.”

“Nosso corpo, de acordo com essa lógica, não é Real. Entretanto, há algo que reside dentro do corpo que é Real: o Atma – que é a própria existência; o estado de estar consciente, a consciência pura.”

“Busque conhecer essa Realidade. Ela permeia todo o cosmos e é imutável e indestrutível. Força alguma pode afetá-la. Ninguém pode mudar o imutável.”

“Esse Atma, Arjuna, é como espaço ou céu. Nuvens surgem no céu, mas suas presenças não fazem com que o céu se afaste para dar espaço a elas. Da mesma forma, o Atma (o Verdadeiro Eu Interior) permanece sempre ele mesmo. As coisas do universo material vêm e vão, aparecem e desaparecem, mas o Atma não muda nunca.”

“Só o corpo é mortal. So o corpo ai ter um fim. Mas o Atma, que é o Verdadeiro Eu Interior, é imortal, e nunca ai ter fim. Então lute, Ó Guerreiro!”

“Você fala em matar ou ser morto; saiba que o corpo pode ser morto, mas a Realidade interior (o Atma) nunca. Dizer que uma pessoa mata e outra é morta pode estar correto a partir de um ponto de vista físico deste mundo, mas não da Realidade.”

“O Atma, esse Real em nós, nunca nasceu, jamais morrerá. De fato, essa Realidade eterna interior nunca será destruída; ela nunca passa por mudanças. Quando seu ego toma conta e você erroneamente identifica-se com seu corpo, sente que a morte física é a morte de si mesmo, e isso é assustador. Mas o Eu (Atma) nunca pode ser ‘morto’. Quando o corpo é destruído, o Atma permanece intacto.”

“Aquele que compreende esse princípio do Atma, difícil de entender – o Verdadeiro Eu Interior que é eterno, indestrutível e imutável -, se dá conta de que nesse nível de compreensão não há ‘matar’ e nem ‘provocar a morte de outra pessoa’.”

“Assim como uma pessoa deixa de lado uma vestimenta já gasta, o morador dentro do corpo coloca de lado sua estrutura humana gasta pelo tempo e veste uma nova.”

“O Morador Interior – o Eu, Atma – permanece não afetado por todas as mudanças do mundo. Ele não é ferido por armas, queimado pelo fogo, secado pelo vento, ou molhado pela água. Esse Eu que mora no interior permeia tudo 9º que significa que está em todo lugar). Ele também é eterno e imutável, porque está além da dimensão de tempo do mundo – o tempo não tem acesso a ele.

Arjuna, o fim da dor e da tristeza presentes em você vai depender de como irá superar sua ignorância quanto a seu Verdadeiro Eu que vive dentro de você.”

(As Qualidades do Atma)

“Não é fácil – como eu disse, Arjuna – penetrar nesse misterioso conceito de Verdadeiro Eu. Tudomais que há no mundo muda. Toda criatura, rocha, folha de grama, ser humano, elemento, ou componente de qualquer tipo se modifica. Só o Atma não muda nunca! Pelo fato de nunca se modificar ele é chamado de imutável. Por ser invisível, não ter forma e não poder ser ouvido, cheirado ou tocado, ele é denominado não manifesto. Porque a mente humana não pode percebê-lo ou concebê-lo, diz-se que ele é incogniscível. Por que sofrer por um Eu que é imutável, não manifesto e incogniscível?”

Krishna espera que essas ideias alcancem uma maior profundidade em Arjuna, e então continua. “Mesmo que você escolha enxergar-se como um corpo deste mundo, que morre, por que sofrer dessa angústia? Esse seu abatimento rouba sua força. A morte é inevitável para tudo o que há na natureza, então por que lamentar-se por algo que é natural? Nada – absolutamente nada – na natureza é permanente.”

“Todos os eres são temporários. Antes de seu nascimento eles estão não manifestos (não materializados). Ao nascerem eles se tornam manifestos. Ao seu final eles se tornam novamente não manifestos. O que há nisso tudo que se lamentar? Sofrer com o temporário somente consome sua energia e detém seu crescimento espiritual.”

“Ninguém compreende realmente o Atma, Arjuna. Uma pessoa o enxerga como maravilhoso, outra fala sobre sua glória, outras dizem que ele é estranho, surpreendente, e há muitas que ouvem falar, mas não o compreendem absolutamente. Muito poucas chegam a pensar em investigar sobre o que há além deste mundo físico.”

“Tenho plena consciência de que enveredei por alta filosofia, mas você precisa compreender que todos os seres, quer sejam chamados de ‘amigos’ ou de ‘inimigos’, possuem esse indestrutível Atma dentro de si. Você deve estar preparado para permanecer em equilíbrio diante dessa sua dor, dessa sua tristeza debilitante.”

(O Karma Pessoal do Guerreiro)

“O próprio dever pessoal na vida (o próprio sva-dharma) deveria ser visto como a responsabilidade própria rara com seu Eu superior, o Atma. Esse nível altíssimo de dever carrega consigo a exigência de que esse alguém nunca fará nada contrário a esse Verdadeiro Eu Dentro de Si. E mesmo se você considerar seu sva-dharma mais estritamente do ponto de vista de manter-se fiel a seu ofício, não deveria hesitar em lutar. Para um guerreiro, a guerra contra o mal, a ganância, a crueldade, o ódio e o ciúme é o dever supremo.”

“Uma maré de sorte vem, mas raramente. Essa guerra é uma formidável, e não provocada, oportunidade para você lutar pela justiça; para um guerreiro, isso não é nada menos que um passe livre para o paraíso. Assim, regojise-se, Arjuna. Fique feliz. Esta é a sua oportunidade!”

“Mas se você não lutar nessa batalha do bem sobre o mal, vai falhar tanto em seu dever neste mundo quanto em seu dever para com seu verdadeiro Eu. Você violará seu sva-dharma. Não fazer a coisa certa quando ela ´´e exigida é pior do que fazer a coisa errada.”

“Se você não fizer seu dever, o relato de sua desonra será repetido incessantemente. Para um homem honrado, passar a história como desonrado é um destino pior do que a morte. Seres humanos comuns empenham-se naturalmente para preservar suas vidas, mas o guerreiro o faz de uma maneira diferente. Guerreiros deem estar sempre prontos não apenas para salvaguardar, mas para sacrificar suas vidas por uma causa. Renunciar intencionalmente a sua vida por um ideal aumenta sua glória.”

“Mas seus soberbos soldados pensarão que foi o medo que fez com que você se retirasse. Embora antes o estimassem, eles o tratarão, e ao seu nome, com menosprezo.”

“Seus inimigos, que nutriam respeito invejoso por sua valentia em batalhas, vão difamá-lo e zombar de sua bravura. Você acha realmente que eles vão acreditar que você se retirou por amor a amigos e parentes? Aqueles que costumavam tremer só de pensar em lutar contra você irão espalhar piadas insolentes sobre sua covardia. Deixar de cumprir seu dever irá destruir a reputação merecida que você construiu ao longo de tantas batalhas heroicas.”

“Essa batalha é por uma causa justa, Arjuna. Não importa o que aconteça, você vencerá. Se morto, entrará diretamente no paraíso; se sair vitorioso, terá seu nome e sua fama engrandecidos. De qualquer modo você triunfará. Então, erga-se, Arjuna! Lute!”

“E atenção para com este aspecto importante sobre a vida em geral: O caminho para vencer essa guerra grandiosa é agir da mesma forma diante da dor e do prazer, do lucro e do prejuízo, da vitória e da derrota.”

(O Segredo da Ação Desinteressada)

Krishna, como que para solidificar aquele ponto, interrompe-se por um momento e depois continua. ‘Você acabou de ouvir uma explicação intelectual do princípio do Atma (o Verdadeiro Eu) e da necessidade de distinguir entre o Real (imutável) e o não Real (tudo o que muda). Agora preste atenção enquanto explico uma disciplina espiritual prática chamada karma yoga, para viver uma vida mais efetiva e feliz neste mundo aflitivo, em constante mutação. Esse é o caminho do desapego, da ação dedicada a Deus. Fazendo seu caminho dessa maneira, você pode viver uma vida espiritual e, no entanto, continuar plenamente ativo no mundo. Você pode permanecer como um homem de ação, realizando o seu melhor possível, sem, no entanto, ser limitado ou tomado pelas coisas deste mundo.”

“No karma yoga (literalmente ‘união com Deus por meio da ação’) não há nenhum perigo, Velho Amigo. Nesse caminho, nenhum esforço é desperdiçado e não há falhas. Mesmo uma pequena prática protegerá você do ciclo de morte e renascimento.”

“Quando nossas ações não estão baseadas em interesse por recompensa pessoal, podemos mais facilmente estabilizar a mente e conduzi-la em direção ao Atma, o Verdadeiro Eu Interior. Para as pessoas de mente equilibrada, Arjuna, há apenas uma decisão, sempre, mas para as mentes agitadas, puxadas para mil direções, as decisões que as afligem são intermináveis, e elas esgotam sua força mental. Pessoas com uma mente instável inevitavelmente acabam fracassando; aquelas com uma mente firme, resoluta, alcançam grande sucesso.”

“Há pessoas que, ignorando esse princípio, deleitam-se com seu próprio dogma particular, proclamando que não há nada mais. Sua ideia de paraíso é seu próprio prazer. A razão principal de fazerem suas atividades é obter os prazeres e o poder que o paraíso promete. Assim, apesar de sua motivação ser comum e positiva, elas estão na verdade cheias de desejos egoístas.”

“Com sua mente tomada dessa forma por seus próprios desejos egoístas, por um prazer interminável e o poder, elas não são capazes de desenvolver toda a concentração necessária para atingir a união com Deus, que é o único objetivo real da humanidade.”

“As Escrituras descrevem três componentes da natureza (chamadas gunas). Vou descrevê-los depois com mais detalhes, mas por enquanto concentre-se em transcender todos eles. Foque em ir além de todo o mundo material e de todos os apegos deste mundo. Ficar limitado pela natureza do mundo terreno não é certamente o propósito da vida. Em lugar disso, focalize no Eterno que jaz além desse nível terreno, mundano. Concentre-se em libertar-se da tirania dos chamados pares de opostos.  Liberte-se de ficar sempre tentando avaliar e julgar tudo. Desembarace-se de sue padrão habitual de enxergar as coisas como boas ou más, amáveis ou odiáveis, prazerosas ou dolorosas, e assim por diante. A tendência de ficar preso na armadilha dos aparentemente opostos é uma moléstia comum e debilitante. Em vez disso, permaneça tranquilo e centrado no Verdadeiro Eu (Atma). Tome cuidado para não procurar ser aclamado ou adquirir objetos terrenos.”

“Um reservatório necessário durante um período de seca será de pouco uso durante uma inundação. De maneira semelhante, para a pessoa iluminada até mesmo as Escrituras são supérfluas. Sim, conviva amigavelmente com a existência terrena, mas saiba que você deve transcende-la. Prepare-se para nada menos do que a união com a própria Divindade!”

“Trabalhe duro no mundo, Arjuna, mas pelo amor ao trabalho apenas. Você tem todo o direito de trabalhar, mas não deve almejar os frutos desse trabalho. Embora ninguém possa negar a você os resultados de seus esforços, você pode, por determinação, recusar-se a apegar-se ou a ser afetado pelos resultados, sejam eles favoráveis ou desfavoráveis.”

“Os pontos centrais da questão, Arjuna, são o desejo e a falta de paz interior. Desejo pelo fruto da nossa ação traz preocupação com um possível insucesso – a mente vacilante que eu havia mencionado. Quando você está preocupado com o que vai resultar no final, você desloca-se do presente para um futuro imaginário, quase sempre temeroso. Então a sua ansiedade lhe rouba a energia e, tornando as coisas piores, você passa à inação e a preguiça.”

“Não se atingem grandes resultados em algum momento eventual no futuro, Ó Guerreiro. Apenas no presente você pode forjar um sucesso real. A mente aflita tende a desviar-se do único objetivo real – compreender e realizar o Atma, unindo-se à Divindade, ao Verdadeiro Eu Interior.”

“O ideal, Arjuna, é estra intensamente ativo e, ao mesmo tempo, sem motivações egoístas, sem pensamentos de ganho ou perda pessoal. Dever não contaminado por desejos conduz à paz interior e a maior efetividade. Essa é a arte secreta de viver uma verdadeira vida de sucesso!”

“Trabalhar sem desejo pode parecer impossível, mas o caminho para fazê-lo é colocar pensamentos de Divindade no lugar de pensamentos de desejos. Faça seu trabalho neste mundo com seu coração fixado no Divino em vez de resultados. Não fique aflito com resultados. Mantenha-se sereno tanto no sucesso quanto no fracasso. Essa serenidade mental é o que se quer significar com yoga (união com Deus). De fato, equanimidade é yoga!”

“Trabalho desempenhado com ansiedade, aflito por resultados, é de longe inferior ao trabalho feito em um estado de tranquilidade, de calma. Serenidade – o estado mental sereno, livre de gostos e desgostos, atrações e repulsões é verdadeiramente a atitude ideal com que viver a sua vida. Estar nesse estado mental é estar abrigado, estar junto, com o Divino. Merecedores de piedade são aqueles movidos pelos frutos de suas ações.”

“Quando dotado desse desapego fundamental, você se desprende das consequências cármicas de seus feitos, bons ou maus, deixando de lado os efeitos inevitáveis de suas ações. Nunca perca de vista o objetivo primordial, que é libertar a si próprio da escravidão durante esta vida, livrar-se do apego às coisas terrenas, separar-se do ego e liberar-se verdadeiramente dos ciclos de nascimento e de morte. Quando você realiza isso, torna-se efetivamente uno com Deus.”

“Vejo que você suspira diante desse objetivo impressionante, Arjuna. Saiba que você pode atingi-lo, primeiramente, ao unir seu coração com Deus, e somente então buscar as coisas terrenas. Proceda nessa ordem, não na ordem inversa, e então suas ações estarão unidas ao verdadeiro propósito da ida – que é, novamente, a união com o Divino.”

“Um yogi é uma pessoa verdadeiramente sábia, cuja consciência está unificada com Brahman (a Divindade). Verdadeiros yogis são desprendidos, imparciais. Eles não estão nem um pouco interessados nos frutos de suas ações, e assim abandonaram toda ansiedade. Desapego é a maneira de converter um karma (aqui significando o emaranhado de consequências de nossos atos) carregado de misérias em uma vida livre de misérias. Desapego é a maneira de erguermo-nos acima das atividades terrenas e atingirmos um estado além do terreno.”

“Alcance esse estado transcendente, Arjuna, e entre na batalha não como um mero soldado, mas como um homem verdadeiramente sábio, um yogi. Esses ensinamentos de alta espiritualidade não se dirigem apenas aos reclusos, contemplativos; eles são destinados a pessoas ativas como você, imersas na agitação e na animação do mundo.”

“Quando sua mente atravessa o atoleiro da desilusão, e seu intelecto torna-se limpo de sua confusão sobre a verdade a respeito de quem você é realmente, seu Verdadeiro Eu, então você vai se tornar desapaixonado quanto aos resultados de suas ações.”

“No presente, Arjuna, sua mente está aturdida por ideias e filosofias conflitantes. Quando ela puder parar firme e imperturbável em contemplação do Verdadeiro Eu Interior, você estará iluminado e completamente unido em amor com o Divino. É aqui que a yoga chega a seu ápice: a fusão da consciência individual na Consciência Cósmica. Isso não é nada menos do que o objetivo da vida!”

Arjuna, ouvindo atentamente, interrompe. “Mas Krishna, como identificar a pessoa iluminada que você descreve, aquela que está absorvida no Divino? Como será que tal pessoa iria falar, sentar ou se mover, por exemplo? Se eu soubesse, poderia me empenhar melhor para obter isso.”

Krishna responde: “Velho amigo, você deveria lutar para tornar-se tal pessoa! Essa pessoa é chamada de Um Iluminado, um Sthithaprajna (literalmente, aquele que está profundamente enraizado em sabedoria). É aquele que abandona todos os desejos egoístas, anseios e tormentos do coração; que está satisfeito com o Verdadeiro Eu (Atma) e não quer nada que não seja o Eu. Esse alguém sabe que a felicidade real, só pode ser encontrada dentro de si mesmo.”

“Esse homem ou mulher cuja mente não se perturba pela tristeza e pela adversidade, que não fica sedento por prazeres, e está livre dos três traços que mais maculam a mente – a saber: apego, medo e ira. Alguém assim é um Iluminado, um Sthithaprajna.”

“A pessoa desapegada, livre de desejos, que nem se alegra nem se deprime quando diante de boa ou de má sorte – essa pessoa está equilibrada em sabedoria acima do tumulto deste mundo, sendo, portanto, um Iluminado.”

“O Iluminado aprendeu habilmente a afastar os sentidos das atrações do mundo, da mesma forma que a tartaruga recolhe seus membros para proteger-se. Isso é muito importante, Arjuna. Deixe que Eu explique melhor.”

“Quando as pessoas se afastam dos prazeres terrenos, seu conhecimento do Divino cresce, e esse conhecimento faz com que a ânsia por prazer desapareça gradualmente. Mas, em seu interior, elas podem ainda desejar ardentemente por prazeres. Mesmo as mentes que conhecem o caminho podem ser arrastadas para longe dele por sensações rebeldes, difíceis de dominar.”

“Muito de nossa disciplina espiritual deve, portanto, se concentrar em domesticar sentidos desobedientes, rebeldes, e estar sempre vigilante contra a traição dos sentidos. O refinamento de um indivíduo, ou de uma sociedade, é avaliado pela medida de quão bem a ganância e os desejos são controlados.”

“Os Iluminados subjugam seus sentidos e os mantêm sob controle ao conservar sua mente sempre atenta, concentrada em alcançar o objetivo primordial de união com Deus. Eles adquirem o hábito de substituir por pensamentos divinos os encantos dos sentidos.”

“A espiral descendente para a própria ruína consiste no seguinte processo: ‘ruminar’ (ou simplesmente pensar) a respeito de encantos terrenos desenvolve apego a eles. Dos apegos a objetos sensoriais surgem desejos egoístas. Desejos frustrados fazem com que a cólera irrompa. Da cólera vem a desilusão. Isso provoca confusão na mente e faz esquecer as lições adquiridas com a experiência. Lições esquecidas da experiência obscurecem a razão, o que resulta em perda de discernimento (entre Verdade e não Verdade, Real e não Real). Finalmente, perder a faculdade de discernimento faz com que a pessoa se desvie do único propósito da vida, alcançar a união com a Divindade em seu interior. Então, desafortunadamente, a própria vida acaba sendo desperdiçada.”

“Mas quando você pode moer-se em um mundo que o rodeia com encantos sensoriais, e mesmo assim fica livre, tanto do apego como da aversão a eles, a tranquilidade chega e se instala em seu coração – e você fica absorvido na paz e na sabedoria do Eu que está dentro. Serenidade, Arjuna, é aí que termina todo o sofrimento.”

“Essa sabedoria Átmica (conhecimento do Verdadeiro Eu) não é para todos. Aqueles com mente agitada, descontrolada, não podem sequer imaginar que o Atma está presente aqui dentro. Sem calma, quietude, onde está a meditação? Sem meditação, onde está a paz? Sem a paz, onde está a felicidade?”

“A mente errante, que se apega aos objetos dos sentidos, perde seu discernimento e fica à deriva, desgovernada, uma embarcação sem leme. Até mesmo um vento fraco a desvia do caminho seguro traçado. Aqueles que utilizam todos os seus poderes para restringir os sentidos, estabilizar a mente e liberar-se tanto do apego como da aversão – esses são os de verdadeira sabedoria, são os Iluminados.”

“Pessoas terrenas percebem a própria existência de maneira bastante diferente das pessoas espiritualmente sábias. É como noite e dia; o que é noite para um é dia parea outro. O que as pessoas terrenas experimentam como real – o corpo, buscas terrenas, prazer, dor, doenças, encantos sensoriais -, os Iluminados enxergam como não real e irrelevante. O que o Iluminado conhece como Real – Espírito, tranquilidade, e por aí adiante -, o não iluminado considera como irreal e sem valor.”

“As águas de muitos rios fluem continuamente para o oceano, mas o oceano nunca transborda. De maneira semelhante, desejos e apegos fluem constantemente para a mente do Iluminado, mas ele ou ela, como o oceano em sua profundeza mais extrema, ficam totalmente tranquilos e nunca se perturbam.”

 “Para poder alcançar esse estado de paz absoluta, Arjuna, você deve estar livre do ego (na acepção de ‘eu’ e ‘meu’) e viver desprovido de desejos. Você deve desprezar os desejos.”

“Esse é o estado permanente, calmo, do Iluminado, o Sthithaprajna, aquele em união firmemente estabelecida com Deus. Uma vez que se alcança esse estado, nunca mais se volta à ilusão. Além disso, a pessoa nesse estado, no instante da morte, funde-se com a Divindade e torna-se uma com o Divino. E isso, Arjuna, como eu tenho sempre repetido, é o verdadeiro objetivo da vida!”



(continua...)


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